Luanda - Em boa hora a Rede Angola dedicou uma
reportagem à homossexualidade, um tema que começa a ganhar uma dimensão
alarmante no nosso continente, pelo exagero e violência com que os poderes
públicos de um número crescente de países estigmatizam as relações sexuais
entre pessoas do mesmo sexo.
Fonte: RA
Club-k.net
Aviso desde já que não sou psicólogo nem
psicanalista, e que as minhas considerações são apenas as de alguém que observa
o que se passa à sua volta, num mundo que parece tender para uma
irracionalidade cada vez maior.
A veemência e o rigor com que chefes de
Estado e outros responsáveis se empenham a reprimir a homossexualidade e a
castigar os que a praticam como opção sexual legítima, quando deviam era estar
a tratar de assuntos mais sérios a favor dos seus povos, são passíveis de uma
análise e de uma interpretação mais aprofundadas.
Condenar à morte, à prisão perpétua, a
dez anos de cadeia, seja a que pena for, aqueles que dispondo do seu próprio
corpo elegem livremente o objecto do seu desejo, sem prejudicar nem se imiscuir
na vida de ninguém, é revelador de construções psicológicas que Freud e outros
“cientistas da alma” já há muito explicaram de forma clara e insofismável.
Sem necessidade de estar aqui a repetir
nomes de alguns desses dirigentes, é curioso constatar como aqueles que mais se
assanham contra os homossexuais são precisamente os que são traídos por
comportamentos de mais acentuada prepotência, por uma virilidade de fachada ou
por ademanes e trejeitos que seriam mais próprios daqueles que eles tanto
hostilizam e condenam.
Por outro lado, como fazem muitos,
pretender que a generalização das práticas homossexuais pode ameaçar a própria
sobrevivência da humanidade, pela crescente redução do número de reproduções, é
esquecer que a humanidade já há muito estaria extinta se tivessem nascido todos
os embriões concebidos em relações heterossexuais supostamente vocacionadas
para a procriação.
Também entre nós se nota, da parte de
alguns jornalistas mais histéricos, uma aversão contra os homossexuais, com o
argumento de que esse é um vício trazido pelos europeus e desconhecido na
tradição africana, mito que o José Eduardo Agualusa já teve ocasião de desfazer
neste mesmo espaço de crónicas.
Outros, mais dados à religião, invocam
em apoio das suas posições persecutórias passagens bíblicas em que os
homossexuais são queimados com o “fogo dos céus”, por exemplo em Sodoma,
calando por conveniência que também foram queimados pelo mesmíssimo fogo divino
fetos em gestação, criancinhas recém-nascidas e tudo o mais que se mexia na
cidade condenada.
Esses também não gostam de lembrar que,
se era um pecado merecedor de castigo a exigência da multidão para que lhes
fossem entregues os dois “enviados do Senhor”, a fim de os poderem “conhecer”
(eufemismo dos tradutores da Bíblia para “ter relações sexuais”), não menos
grave e pecaminosa foi a contra-proposta feita por Lot:
“Por favor, meus irmãos, não façais
semelhante maldade. Vede, tenho duas filhas que ainda são virgens. Vou
trazê-las para fora. Podeis fazer com elas o que bem entenderdes; mas nada
façais a estes homens, pois vieram acolher-se sob o meu tecto” (Génesis,
19.7,8).
O que mais chama a atenção nas críticas
desses homofóbicos é o tom agressivamente preconceituoso e também a linguagem
vulgar e rasteira, que deveria levar os seus autores a escavar fundo dentro de
si para tratarem de perceber por que razão lhes repugna tanto uma prática
alheia que em nada afecta a sua pretensa virilidade e que, aliás, até lhes
deixa mais terreno livre para as suas façanhas predadoras de supostos machos
africanos.
Wilhelm Reich, por exemplo, constatou
que a repetida repressão dos impulsos vitais mais profundos leva o ser humano a
criar uma couraça que impede o livre fluir das suas energias sexuais e no fundo
conforma o seu carácter. Segundo ele, as experiências nas quais se frustrou um
impulso para a acção ficam gravadas no corpo sob a forma de uma rigidez
muscular funcional, sendo essa a parte essencial do processo de repressão.
Com o passar do tempo, e à custa da sua
constância e intensidade, essa repressão faz cristalizar a energia bloqueada em
tensões físicas permanentes, em esquemas obsessivos de comportamento, em traços
rígidos de carácter, em propensão para a obediência cega ou o autoritarismo e,
naturalmente, em agressividade contra todos os que assumam aquilo que ele se
viu forçado a reprimir em si mesmo.
Ou seja, traduzindo em linguagem com
menos floreados: os mais ferozes campeões da cruzada contra a homossexualidade
estão possivelmente apenas a denunciar e a dar vazão à sua própria inclinação
homossexual reprimida.
William Shakespeare, que nestas
profundezas do humano antecipou em séculos os mais brilhantes dos actuais
estudiosos do tema, já na tragédia do Rei Lear deixava perceber as contradições
e a hipocrisia dos comportamentos tidos como virtuosos. É o próprio rei, já
enlouquecido pela traição de duas das suas filhas e pelo remorso pela rejeição
de uma terceira, que desmascara o lado oculto de dois comportamentos perversos,
similares aos da homofobia:
“Contemplai aquela dama afectada, cujo
rosto indica que entre as suas pernas apenas há frigidez, que pretende ser
virtuosa, mostrando escrúpulos, e abana a cabeça se ouvir falar em prazer. Nem
a doninha, nem o garanhão se entregam à luxúria com um desejo mais voluptuoso“.
E ainda: “Tu, miserável bedel, suspende
a tua mão manchada de sangue. Por que açoitas essa prostituta? Desnuda as tuas
próprias costas. Tu desejas ardentemente gozar do prazer pelo qual a punes“. E
Shakespeare sabia seguramente do que falava, porque há também quem o acuse de
ter sido homossexual…
Imagem: www.imagensdeflores.net.br
Sem comentários:
Enviar um comentário