sábado, 7 de fevereiro de 2015

O lado oculto da homofobia - José Mena Abrantes




Luanda - Em boa hora a Rede Angola dedicou uma reportagem à homossexualidade, um tema que começa a ganhar uma dimensão alarmante no nosso continente, pelo exagero e violência com que os poderes públicos de um número crescente de países estigmatizam as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo.

Fonte: RA
Club-k.net

Aviso desde já que não sou psicólogo nem psicanalista, e que as minhas considerações são apenas as de alguém que observa o que se passa à sua volta, num mundo que parece tender para uma irracionalidade cada vez maior.
A veemência e o rigor com que chefes de Estado e outros responsáveis se empenham a reprimir a homossexualidade e a castigar os que a praticam como opção sexual legítima, quando deviam era estar a tratar de assuntos mais sérios a favor dos seus povos, são passíveis de uma análise e de uma interpretação mais aprofundadas.
Condenar à morte, à prisão perpétua, a dez anos de cadeia, seja a que pena for, aqueles que dispondo do seu próprio corpo elegem livremente o objecto do seu desejo, sem prejudicar nem se imiscuir na vida de ninguém, é revelador de construções psicológicas que Freud e outros “cientistas da alma” já há muito explicaram de forma clara e insofismável.
Sem necessidade de estar aqui a repetir nomes de alguns desses dirigentes, é curioso constatar como aqueles que mais se assanham contra os homossexuais são precisamente os que são traídos por comportamentos de mais acentuada prepotência, por uma virilidade de fachada ou por ademanes e trejeitos que seriam mais próprios daqueles que eles tanto hostilizam e condenam.
Por outro lado, como fazem muitos, pretender que a generalização das práticas homossexuais pode ameaçar a própria sobrevivência da humanidade, pela crescente redução do número de reproduções, é esquecer que a humanidade já há muito estaria extinta se tivessem nascido todos os embriões concebidos em relações heterossexuais supostamente vocacionadas para a procriação.
Também entre nós se nota, da parte de alguns jornalistas mais histéricos, uma aversão contra os homossexuais, com o argumento de que esse é um vício trazido pelos europeus e desconhecido na tradição africana, mito que o José Eduardo Agualusa já teve ocasião de desfazer neste mesmo espaço de crónicas.
Outros, mais dados à religião, invocam em apoio das suas posições persecutórias passagens bíblicas em que os homossexuais são queimados com o “fogo dos céus”, por exemplo em Sodoma, calando por conveniência que também foram queimados pelo mesmíssimo fogo divino fetos em gestação, criancinhas recém-nascidas e tudo o mais que se mexia na cidade condenada.
Esses também não gostam de lembrar que, se era um pecado merecedor de castigo a exigência da multidão para que lhes fossem entregues os dois “enviados do Senhor”, a fim de os poderem “conhecer” (eufemismo dos tradutores da Bíblia para “ter relações sexuais”), não menos grave e pecaminosa foi a contra-proposta feita por Lot:
“Por favor, meus irmãos, não façais semelhante maldade. Vede, tenho duas filhas que ainda são virgens. Vou trazê-las para fora. Podeis fazer com elas o que bem entenderdes; mas nada façais a estes homens, pois vieram acolher-se sob o meu tecto” (Génesis, 19.7,8).
O que mais chama a atenção nas críticas desses homofóbicos é o tom agressivamente preconceituoso e também a linguagem vulgar e rasteira, que deveria levar os seus autores a escavar fundo dentro de si para tratarem de perceber por que razão lhes repugna tanto uma prática alheia que em nada afecta a sua pretensa virilidade e que, aliás, até lhes deixa mais terreno livre para as suas façanhas predadoras de supostos machos africanos.
Wilhelm Reich, por exemplo, constatou que a repetida repressão dos impulsos vitais mais profundos leva o ser humano a criar uma couraça que impede o livre fluir das suas energias sexuais e no fundo conforma o seu carácter. Segundo ele, as experiências nas quais se frustrou um impulso para a acção ficam gravadas no corpo sob a forma de uma rigidez muscular funcional, sendo essa a parte essencial do processo de repressão.
Com o passar do tempo, e à custa da sua constância e intensidade, essa repressão faz cristalizar a energia bloqueada em tensões físicas permanentes, em esquemas obsessivos de comportamento, em traços rígidos de carácter, em propensão para a obediência cega ou o autoritarismo e, naturalmente, em agressividade contra todos os que assumam aquilo que ele se viu forçado a reprimir em si mesmo.
Ou seja, traduzindo em linguagem com menos floreados: os mais ferozes campeões da cruzada contra a homossexualidade estão possivelmente apenas a denunciar e a dar vazão à sua própria inclinação homossexual reprimida.
William Shakespeare, que nestas profundezas do humano antecipou em séculos os mais brilhantes dos actuais estudiosos do tema, já na tragédia do Rei Lear deixava perceber as contradições e a hipocrisia dos comportamentos tidos como virtuosos. É o próprio rei, já enlouquecido pela traição de duas das suas filhas e pelo remorso pela rejeição de uma terceira, que desmascara o lado oculto de dois comportamentos perversos, similares aos da homofobia:
“Contemplai aquela dama afectada, cujo rosto indica que entre as suas pernas apenas há frigidez, que pretende ser virtuosa, mostrando escrúpulos, e abana a cabeça se ouvir falar em prazer. Nem a doninha, nem o garanhão se entregam à luxúria com um desejo mais voluptuoso“.
E ainda: “Tu, miserável bedel, suspende a tua mão manchada de sangue. Por que açoitas essa prostituta? Desnuda as tuas próprias costas. Tu desejas ardentemente gozar do prazer pelo qual a punes“. E Shakespeare sabia seguramente do que falava, porque há também quem o acuse de ter sido homossexual…

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