Na Antiguidade,
ninguém saía dizendo por aí que fulano era gay, mesmo que fosse. Por milhares
de anos, o amor entre iguais era tão comum que não existia nem o conceito de
homossexualidade
Humberto
Rodrigues e Cláudia de Castro Lima
http://guiadoestudante.abril.com.br/
A união civil
entre pessoas do mesmo sexo pode parecer algo bastante recente, coisa de gente
moderna. Apenas em 1989 a Dinamarca abraçou a causa – foi o primeiro país a
fazer isso. Hoje, o casamento gay está amparado na lei de 21 nações. Essa
marcha, porém, de nova não tem nada. Sua história retoma um tempo em que não
havia necessidade de distinguir o relacionamento entre pessoas do mesmo sexo –
para os povos antigos, o conceito de homossexualidade simplesmente não existia.
As tribos das
ilhas de Nova Guiné, Fiji e Salomão, no oceano Pacífico, cerca de 10 mil anos
atrás já exercitavam algumas formas de homossexualidade ritual. Os melanésios
acreditavam que o conhecimento sagrado só poderia ser transmitido por meio do
coito entre duplas do mesmo sexo. No rito, um homem travestido representava um
espírito dotado de grande alegria – e seus trejeitos não eram muito diferentes
dos de um show de drag queens atual.
Um dos mais
antigos e importantes conjuntos de leis do mundo, elaborado pelo imperador
Hammurabi na antiga Mesopotâmia em cerca de 1750 a.C., contém alguns
privilégios que deveriam ser dados aos prostitutos e às prostitutas que
participavam dos cultos religiosos. Eles eram sagrados e tinham relações com os
homens devotos dentro dos templos da Mesopotâmia, Fenícia, Egito, Sicília e
Índia, entre outros lugares. Herdeiras do Código de Hammurabi, as leis hititas
chegam a reconhecer uniões entre pessoas do mesmo sexo. E olha que isso foi há
mais de 3 mil anos.
Na Grécia e na
Roma da Antiguidade, era absolutamente normal um homem mais velho ter relações
sexuais com um mais jovem. O filósofo grego Sócrates (469-399), adepto do amor
homossexual, pregava que o coito anal era a melhor forma de inspiração – e o
sexo heterossexual, por sua vez, servia apenas para procriar. Para a educação
dos jovens atenienses, esperava-se que os adolescentes aceitassem a amizade e
os laços de amor com homens mais velhos, para absorver suas virtudes e seus
conhecimentos de filosofia. Após os 12 anos, desde que o garoto concordasse,
transformava-se em um parceiro passivo até por volta dos 18 anos, com a
aprovação de sua família. Normalmente, aos 25 tornava-se um homem – e aí
esperava-se que assumisse o papel ativo.
Entre os romanos,
os ideais amorosos eram equivalentes aos dos gregos. A pederastia (relação
entre um homem adulto e um rapaz mais jovem) era encarada como um sentimento
puro. No entanto, se a ordem fosse subvertida e um homem mais velho mantivesse
relações sexuais com outro, estava estabelecida sua desgraça – os adultos
passivos eram encarados com desprezo por toda a sociedade, a ponto de o sujeito
ser impedido de exercer cargos públicos.
Boa parte do
modo como os povos da Antiguidade encaravam o amor entre pessoas do mesmo sexo
pode ser explicada – ou, ao menos, entendida – se levarmos em conta suas
crenças. Na mitologia grega, romana ou entre os deuses hindus e babilônios, por
exemplo, a homossexualidade existia. Muitos deuses antigos não têm sexo
definido. Alguns, como o popularíssimo hindu Ganesh, da fortuna, teriam até
mesmo nascido de uma relação entre duas divindades femininas. Não é nada
difícil perceber que, na Antiguidade, o sexo não tinha como objetivo exclusivo
a procriação. Isso começou a mudar, porém, com o advento do cristianismo.
Sexo para
procriar
O judaísmo já
pregava que as relações sexuais tinham como único fim a máxima exigida por
Deus: “Crescei e multiplicai-vos”. Até o início do século 4, essa idéia, porém,
ficou restrita à comunidade judaica e aos poucos cristãos que existiam. Nessa
época, o imperador romano Constantino converteu-se à fé cristã – e, na
seqüência, o cristianismo tornou-se obrigatório no maior império do mundo. Como
o sexo passou a ser encarado apenas como forma de gerar filhos, a homossexualidade
virou algo antinatural. Data de 390, do reinado de Teodósio, o Grande, o
primeiro registro de um castigo corporal aplicado em gays.
O primeiro texto
de lei proibindo sem reservas a homossexualidade foi promulgado mais tarde, em
533, pelo imperador cristão Justiniano. Ele vinculou todas as relações
homossexuais ao adultério – para o qual se previa a pena de morte. Mais tarde,
em 538 e 544, outras leis obrigavam os homossexuais a arrepender-se de seus
pecados e fazer penitência. O nascimento e a expansão do islamismo, a partir do
século 7, junto com a força cristã, reforçaram a teoria do sexo para
procriação.
Durante muito
tempo, até meados do século 14, no entanto, embora a fé condenasse os prazeres
da carne, na prática os costumes permaneciam os mesmos. A Igreja viu-se, a
partir daí, diante de uma série de crises. Os católicos assistiram horrorizados
à conversão ao protestantismo de diversas pessoas após a Reforma de Lutero. E,
com o humanismo renascentista, os valores clássicos – e, assim, o gosto dos
antigos pela forma masculina – voltaram à tona. Pintores, escritores,
dramaturgos e poetas celebravam o amor entre homens. Além disso, entre a
nobreza, que costumava ditar moda, a homossexualidade sempre correu solta. E, o
mais importante, sem censura alguma – ficaram notórios os casos homossexuais de
monarcas como o inglês Ricardo Coração de Leão (1157-1199).
No curto
intervalo entre 1347 e 1351, a peste negra assolou a Europa e matou 25 milhões
de pessoas. Como ninguém sabia a causa da doença, a especulação ultrapassava os
limites da saúde pública e alcançava os costumes. O “pecado” em que viviam os
homens passou a ser apontado como a causa dela e de diversas outras
catástrofes, como fomes e guerras. Judeus, hereges e sodomitas tornaram-se a
causa dos males da sociedade. Não havia outra solução a não ser a erradicação
desses grupos. Medidas enérgicas foram tomadas. Em Florença, por exemplo, a
sodomia foi proibida em 1432, com a criação dos Ufficiali di Notte (agentes da
noite). O resultado? Setenta anos de perseguição aos homens que mantinham
relações com outros. Entre 1432 e 1502, mais de 17 mil foram incriminados e 3
mil condenados por sodomia, numa população de 40 mil habitantes.
Leis duras foram
estabelecidas em vários outros países europeus. Na Inglaterra, o século 19
começou com o enforcamento de vários cidadãos acusados de sodomia. E, entre
1800 e 1834, 80 homens foram mortos. Apenas em 1861 o país aboliu a pena de
morte para os atos de sodomia, substituindo-a por uma pena de dez anos de trabalhos
forçados.
Ciência maluca
Outro tratamento
nada usual foi destinado tanto à homossexualidade quanto à ninfomania feminina:
a lobotomia. Desenvolvida pelo neurocirurgião português António Egas Moniz, que
chegou a ganhar o prêmio Nobel de Medicina de 1949 por isso, ela consistia em
uma técnica cirúrgica que cortava um pedaço do cérebro dos doentes
psiquiátricos, mais precisamente nervos do córtex pré-frontal. Na Suécia, 3 mil
gays foram lobotomizados. Na Dinamarca, 3500 – a última cirurgia foi em 1981.
Nos Estados Unidos, cidadãos portadores de “disfunções sexuais” lobotomizados
chegaram às dezenas de milhares. O tratamento médico era empregado porque a
homossexualidade passou a ser vista como uma doença, uma espécie de defeito
genético.
A preocupação
científica com os gays começou no século 19. A expressão “homossexual” foi
criada em 1848, pelo psicólogo alemão Karoly Maria Benkert. Sua definição para
o termo: “Além do impulso sexual normal dos homens e das mulheres, a natureza,
do seu modo soberano, dotou à nascença certos indivíduos masculinos e femininos
do impulso homossexual(...). Esse impulso cria de antemão uma aversão direta ao
sexo oposto”. Em 1897, o inglês Havelock Ellis publicou o primeiro livro médico
sobre homossexualismo em inglês, Sexual Inversion (“Inversão sexual”, inédito
no Brasil). Como muitos da época, ele defendia a idéia de que a
homossexualidade era congênita e hereditária. A opinião científica, médica e
psiquiátrica vigente era de que a homossexualidade era uma doença resultante de
anormalidade genética associada a problemas mentais na família. A teoria, junto
das idéias emergentes sobre pureza racial e eugenismo nos anos 1930, torna
fácil entender por que a lobotomia foi indicada para os homossexuais.
A situação só
começou a mudar no fim do século passado, quando a discussão passou a se
libertar de estigmas. Em 1979, a Associação Americana de Psiquiatria finalmente
tirou a homossexualidade de sua lista oficial de doenças mentais. Na mesma
época, o advento da aids teve um resultado ambíguo para os homossexuais. Embora
tenha ressuscitado o preconceito, já que a doença foi associada aos gays a
princípio, também fez com que muitos deles viessem à tona, sem medo de mostrar
a cara, para reivindicar seus direitos. Durante os anos 80 e 90, a maioria dos
países desenvolvidos descriminalizou a homossexualidade e proibiu a
discriminação contra gays e lésbicas. Em 2004, o Supremo Tribunal dos Estados
Unidos invalidou todas as leis estaduais que ainda proibiam a sodomia.
“Em toda a
história e em todo o mundo a homossexualidade tem sido um componente da vida
humana”, escreveu William Naphy, diretor do colégio de Teologia, História e
Filosofia da Universidade de Aberdeen, Reino Unido, em Born to Be Gay –
História da Homossexualidade. “Nesse sentido, não pode ser considerada
antinatural ou anormal. Não há dúvida de que a homossexualidade é e sempre foi
menos comum do que a heterossexualidade. No entanto, a homossexualidade é
claramente uma característica muito real da espécie humana.” Para muitos, ainda
hoje sair do armário continua sendo uma questão de tempo. As portas, no
entanto, vêm sendo abertas desde a Antiguidade.
Imagem: www.turismogrecia.info
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