Rudolf Brazda conta sua experiencia
Muito
se fala sobre a perseguição aos judeus na Segunda Guerra Mundial, mas o
sofrimento de outros grupos visados pelos nazistas, como os gays, ainda pode, e
deve, ser mais bem narrado. Triângulo Rosa – Um Homossexual no Campo
de Concentração Nazista (Mescla Editorial, tradução de Ângela Cristina
Salgueiro Marques, 184 páginas, 48,90 reais), livro lançado nesta semana no
Brasil – primeiro país estrangeiro a lançar uma tradução – é um esforço neste
sentido. Ele conta a história de Rudolf Brazda, único sobrevivente entre os
10.000 homossexuais deportados pela ditadura de Adolf Hitler.
http://veja.abril.com.br/blog/meus-livros/leituras-cruzadas/5111/
Rudolf
Brazda se descobriu homossexual muito jovem. Antes dos 10 anos de idade, seus
amigos já comentavam que era afeminado. Quando adolescente, mostrou ser um
verdadeiro pé de valsa. As garotas disputavam entre si para ser seu par na
pista de dança. Não eram poucas as vezes em que elas tentavam ir mais longe,
mas ele não correspondia. Estava claro que preferia os garotos. Filho de pais
checos, livres de qualquer tipo de preconceitos, Brazda não teve problemas ao
levar seu primeiro grande amor para conhecê-los. Manteve um relacionamento
sério com Werner de 1933 a 1936, quando o companheiro foi convocado para o
serviço militar. Eles não se veriam mais. Depois dele, porém, vieram outros
amores.
Nascido
no vilarejo de Brossen, perto Leipzig, na Alemanha, em 23 de junho de 1913,
Brazda tinha apenas 20 anos quando os nazistas tomaram o poder. Especialmente
em 1935, a legislação contra os homossexuais foi endurecida pelo regime. Os
termos do parágrafo 175 do código penal foram reforçados: “A luxúria contra o
que é natural, realizada entre pessoas do sexo masculino ou entre homem e
animal é passível de prisão e pode também acarretar a perda de direitos civis”.
Todos os gays passaram a ser cadastrados na Central do II Reich, com o objetivo
claro da repressão. As estimativas da época apontam que cerca de 100.000
pessoas foram fichadas, entre elas Brazda e seus amigos.
Ele
foi condenado pela primeira vez em 1937. Passou seis meses na prisão e acabou
expulso da Alemanha. Esperava retomar a vida na Tchecoslováquia, mas, em 1938,
o regime de Hitler atravessou o seu caminho mais uma vez. Com a anexação da
província dos Sudetos pelos nazistas – onde fica a cidade onde morava, Karlsbad
-, as leis alemãs passaram a ser aplicadas ali com o mesmo rigor. Em pouco
tempo, Brazda foi preso novamente e condenado a 14 meses de prisão. Embora
tenha cumprido a pena integralmente, não chegou a ser libertado. No auge do
regime de Hitler, os campos de concentração se propagaram: abrigariam também
prisioneiros de guerra, comunistas, social-democratas, judeus, testemunhas de
Jeová, ciganos e homossexuais.
Mais um triângulo
rosa -
Em 8 de agosto de 1942, Brazda foi mandado para o campo de Buchenwald.
Identificado com o símbolo de um triângulo rosa, afixado em sua roupa, Brazda
era apenas mais um entre os 10.000 gays deportados para campos de concentração
durante a II Guerra. Durante três anos, vivenciou todo tipo de atrocidade. A
humilhação começava logo que os prisioneiros chegavam ao local, pois todos eram
despidos para inspeção. Brazda, particularmente, ainda participou de uma briga
feia com um SS. Levou um tapa no rosto depois de ter lhe respondido de maneira
insolente e perdeu três dentes.
Sempre
otimista, Brazda conta que, apesar de tudo, sua passagem pelo campo poderia ter
sido pior. “Outros foram ainda mais prejudicados. Eu ao menos podia trabalhar.
Eles me deixavam relativamente tranquilo, só era necessário prestar atenção
para não me fazer notar pelos SS”, diz lenta e pausadamente, em entrevista por
telefone ao site de VEJA. “Testemunhei diversos tipos de violência contra
outros prisioneiros. Foram coisas que não me machucaram fisicamente, mas que me
marcaram de forma profunda”, acrescenta. Brazda foi libertado em 11 de abril de
1945, quando fixou residência na França.
Para
manter o sorriso no rosto, ele se recorda principalmente das fases felizes de
sua vida, ou seja, antes de ser preso pela primeira vez e depois do período em
que esteve no campo de concentração. Após nova pausa para reflexão, Brazda
conclui que o melhor período foi aquele em que viveu com seu último
companheiro, Eddi. Eles se conheceram em 1950 e a partir 1959 passaram a morar
juntos na França. “Tínhamos uma boa vida, trabalhávamos. Éramos livres e
podíamos nos deslocar como quiséssemos”, lembra. Permaneceram juntos por quase
meio século – Eddi morreu em 2003. Hoje, aos 97 anos, Brazda é o último
sobrevivente entre os homossexuais deportados pelos nazistas. Crente em Deus,
ele define sua passagem no mundo como “plena”.
A reconstrução da
história -
Assumindo o papel de confidente de Brazda, o pesquisador e militante dos
direitos dos homossexuais Jean-Luc
Schwab
pôde transformar seus depoimentos no livro Triângulo Rosa.
Coincidentemente, havia entrado em 2008 para uma associação dedicada ao
reconhecimento desse tipo de deportados na França quando descobriu que o último
sobrevivente morava bem perto dele, na região de Mulhouse, na França. Para
recompor a trajetória do personagem, Schwab recorreu a centenas de horas de
entrevistas com diferentes fontes, pesquisas pessoais em arquivos alemães,
checos e franceses e viagens aos antigos lugares ligados à vida e ao confinamento
do biografado.
Leia
a seguir trechos da entrevista com o co-autor Jean-Luc Schwab:
Como o senhor
tomou conhecimento da história de Brazda? Ouvi falar de
Rudolf num jornal local francês, em 2008. Pouco antes, havíamos inaugurado em
Berlim o memorial às vítimas homossexuais do nazismo (Homosexuellen-Denkmal),
em 27 de maio. Na inauguração, lamentamos que não havia um só sobrevivente para
ver o monumento. Ao saber do fato pela TV, Rudolf – que até então achava que
sua história não interessava a ninguém – resolveu avisar que estava vivo. Ele
não se dava conta do valor histórico de seu testemunho. No fim de junho, então,
ele foi convidado para o Gay Pride na Alemanha, e foi feita uma nova cerimônia
em homenagem ao memorial, desta vez com uma das vítimas presente. Depois disso,
a notícia se espalhou pelos meios de comunicação internacionais.
De que forma o
senhor pôde coletar material histórico suficiente para a escritura do livro? Quando fui
visitar Rudolf pela primeira vez, me dei conta de que sua história não tinha
sido documentada. Então, comecei a entrevistá-lo, para recolher seu testemunho
verbal ao menos, e depois gravar os depoimentos em vídeo. Na época, ele estava
com 95 anos. E, quando se pede a alguém dessa idade para falar de algo que
ocorreu há mais de 60 anos, as lembranças não são muito claras. Então, foi
importante verificar nos arquivos se os fatos históricos correspondiam àquilo
que ele dizia. Isso nos permitiu descobrir alguns pontos de que ele se esqueceu
e precisar outros citados por ele, especialmente algumas datas.
Como nazistas
faziam para descobrir quem era ou não era homossexual? No caso de
Rudolf, seu nome foi evocado por seus amigos. Não tive acesso a arquivos de
outras pessoas, mas, de uma forma geral, quando havia uma denúncia de homossexualidade,
era aberto um inquérito policial e, depois disso, bastava provar que o acusado
de fato teve relações “contra a natureza” com uma ou mais pessoas. Nesses
inquéritos, faziam de tudo para descobrir o máximo possível de nomes
envolvidos, para começar novas investigações e assim por diante.
Depois de tanta
conversa, surgiu uma amizade entre o senhor e Brazda? No início, não
passava de uma relação entre pesquisador e sujeito de estudo. Hoje em dia, me
tornei um amigo e confidente. Eu o ajudo no cotidiano, como para preencher
documentos ou garantir o contato com seus médicos e enfermeiros. Passo em sua
casa frequentemente para visitá-lo, mas não mais para fazer perguntas. De um
ano para cá, sua memória vem se desgastando. É bom saber que sua história pôde
ser eternizada.
Cecília Araújo
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